domingo, 14 de setembro de 2008

Maria do Carmo Vieira

Agradeço a esta senhora, professora de Português do ensino secundário, a coragem, a lucidez e a luta pelas convicções, fruto de 30 anos de dedicação ao ensino da literatura portuguesa.
Haja alguém que não se cala, alguém que não desiste de pensar e de expor as suas ideias, sem medo de consequências.

Excertos de uma entrevista publicada hoje, dia 14, no Notícias Magazine ( D.N.) :

"Só a resignação explica que se obedeça ao teor dos novos programas, que privilegiam o novo, ou seja os autores contemporâneos, no quase completo apagamento do que é velho, ou seja, os autores clássicos, a fonte. Este discurso oficial decidiu que os interesses dos alunos se centram no presente, liberto de influências, e no excesso de imagens que humanamente é impossível reter e que se dispersam sem qualquer significado. Talvez o objectivo primeiro seja treinar os alunos a não pensar..."

"...chamaram-me elitista quando dei a conhecer, de forma crítica, a presença do Big Brother e das telenovelas nos manuais, e quando defendi a importância da arte, nela incluindo a literatura, na sala de aula. Com efeito, se não for a escola a preencher o vazio cultural de uma situação familiar fragilizada, quem o fará? ..."

"Expressiva é a frase de uma das canções de Schumann: "Aqueles que são ignorantes são fáceis de conduzir." Mas isto é um crime, fazer com que os alunos se esqueçam de si próprios, se anulem enqto seres humanos, nunca reflictam sobre o que quer que seja. E depois admiramo-nos com o facto de os jovens não irem votar."

Questionada sobre como imaginaria um Plano Nacional de Salvação da Escola Pública, responde:

"Antes de mais, começar pelos conteúdos dos programas, o que exigiria um debate sério, sem a arrogância que temos vindo a conhecer, um trabalho rigoroso na sua planificação e de redacção límpida. É inadmissível que não exista um fio condutor na elaboração dos novos programas ou que tenhamos de ler 2 e 3 vezes o que está escrito, sem que compreendamos o que se pretende.. Há sempre a tendência para os alongar em demasia e, no caso do Português, é preciso tempo para trabalhar com os alunos a língua, a análise do texto, a contextualização de um autor, a par da literatura, a pintura, a música, ou outras artes. Dever-se-ia tb regressar ao estudo da gramática, verdadeira reflexão sobre a língua, e ao uso de dicionário..."
"Para além da reavaliação dos programas, esvaziados drasticamente dos seus conteúdos pela Reforma de 2003, era necessário que a escola voltasse a ser um espaço de qualidade, valorizando as capacidades dos alunos ( curiosidade, desejo de saber, o pensar, o imaginar, entre outras.) exaltando valores que têm sido silenciados, como o esforço, a força de vontade, o rigor, o trabalho, o brio e a alegria de vencer as dificuldades para atingir um objectivo. Relevante seria igualmente a escola voltar a privilegiar a relação ensinar-aprender, que em si contém desafio, partilha, solidariedade, dádiva e amizade."

4 comentários:

Unknown disse...

Estou de acordo com o que texto expressa.Há falta de humanidades, uma prevalência da superficialidade e das técnicas; relativamente ao português o caso é mesmo dramático...mas o problema é que estamos no sec.XXI em acentuada ultrapassagem dos paradigmas que nos regeram...e e ainda por cima num contexto de multiculturidade. O que a senhora diz é fantástico mas acho que se esquece desses pressupostos.Será melhor que muitos saibam pouco, ou que poucos saibam muito?

reb disse...

O saber não é como a comida: chega para todos, embora de formas diferentes. A continuar a haver uma única via de ensino, acaba por se ter que nivelar por baixo.
A professora esta entrevista ensina português no secundário ( ultimos anos do liceu antes da universidade)e foi ela que denunciou o programa em vigor que introduzia "textos" de novelas para cativar alunos. Estamos a falar de um nível de ensino em que só faz sentido que se aprenda a gostar da nossa literatura, e a escrever bem. Se não, quem serão os professores de português daqui a 10/ 20 anos?

nelio disse...

muito francamente a minha opinião é que se está a ir longe demais nesta coisa de cativar os alunos. qualquer dia os professores terão que se vestir de palhaços ou de personagem de telenovela para terem a atenção dos alunos. cria-se nestes jovens a ilusão de que nunca terão que fazer nenhum esforço para vencerem na vida, porque os profs e a escola tudo farão para os levar em ombros até ao diploma do 12º. só que depois, a sociedade dá-lhes um chuto no rabo e diz: agora amanha-te. as regras deveriam ser as mesmas dentro e fora da escola. a escola não pode ser um microcosmos de facilitismos, quando a vida em sociedade está cada vez mais exigente e competitiva.

reb disse...

Estou totalmente de acordo contigo. Alguns dos meus alunos o que têm aprendido na escola básica é que podem ir às aulas qdo querem, chegar atrasados sempre que querem, não levar material e não se esforçarem, pq já perceberam que, no final do ano, passarão para o ano seguinte.
Às vezes pergunto-lhes o que pensam que aconteceria se aquilo fosse um local de trabalho e eles chegassem todos os dias atrasados. Quando lhes digo que, no fim do mês, iriam para a rua e entraria outro no lugar deles, ficam a olhar para mim com um ar de espanto.
Como dizes, num mundo cada vez mais competitivo, a escola ensina-lhes que tudo é fácil, que tudo lhes é devido, sem esforço. É realmente um microcosmos.
Falo do ensino básico, escolaridade obrigatória...e que corre o risco de se estender ao secundário qdo a a escolaridade se estender ao 12º ano!