Retirado de um blog "Meditação na pastelaria", excertos de uma entrevista a Damásio, em 2003, aquando da publicação do livro " Ao encontro de Espinosa":
Quer isso dizer que se opõe à sacralização da ciência?
A ciência é uma das vias para o saber mas não é a única. É evidente que certos aspectos da natureza requerem uma abordagem científica, e é evidente que a tecnologia que deriva da ciência tem um papel decisivo a desempenhar nas soluções para o sofrimento humano. Mas a integração dos dados científicos numa visão abrangente da natureza requer uma empresa supracientífica. Há mais de um pedestal dentro da cultura
.O lançamento de um livro como Espinosa, de Steven Nadler, poderá ser (mais) um sinal de que assistimos à redescoberta do filósofo proscrito educado na língua portuguesa?
Espinosa começa hoje a ser redescoberto. Não há grande dúvida de que a figura central e insuficientemente reconhecida do «Radical Enlightenment» é Espinosa, e que as suas ideias sobre o tecido social tiveram uma influência subterrânea no desenvolvimento da modernidade europeia e norte-americana. A mim, porém, aquilo que mais me interessa, naturalmente, é a sua radicalidade no que respeita à concepção da mente humana. É tão radical que antecipa diversas ideias que hoje fazem parte da biologia e da neurociência de ponta. É por isso que digo neste livro que Espinosa foi um protobiologista. É de notar também que esta modernidade biológica implica uma modernidade ética que era revolucionária no século XVII e que continua ainda a sê-lo. Talvez o maior valor de Espinosa resida precisamente nesse facto.
O tema das emoções tem sido uma constante do seu trabalho. Em O Erro de Descartes relacionava-as com a razão, em O Sentimento de Si com a consciência. Neste terceiro, ocupa-se das «emoções sociais». Quais foram, resumidamente, as investigações que lhe permitiram ir alargando o campo de acção das emoções?
Há diversas linhas de investigação que apoiam esse percurso. As primeiras dizem respeito a doentes com lesões pré-frontais. As segundas a doentes muito jovens com lesões semelhantes. As primeiras demonstram a ruptura dos mecanismos de decisão que se segue ao comprometimento de certas emoções; as segundas mostram como tais comprometimentos bloqueiam a socialização de uma forma quase completa. Uma outra linha de investigações, em indivíduos normais, usando a neuroimagem funcional, também nos deu a possibilidade de delinear pormenores do processo de sentir as emoções. Todo este trabalho tem permitido confirmar hipóteses formuladas há mais de uma dezena de anos. E daí podermos afirmar que na base de todas as faculdades ― decisão, consciência, comportamentos éticos ― estão o corpo, a emoção como emblema de regulação biológica, e o sentir das emoções.«Os sentimentos orientam os esforços conscientes e deliberados da autoconservação e ajudam-nos a fazer escolhas que dizem respeito à maneira como a autopreservação se deve realizar», escreve.
Estaria de acordo em contestar a famosa máxima cartesiana «Penso, logo existo» através da fórmula «Sinto, logo existo»?
Absolutamente. «Sinto, logo existo» é uma proposição verdadeira e é a formulação preferível. Sem o sentir não é possível pensar ou conhecer o que se pensa. Sem sentir não há «si». E na ausência da maquinaria da emoção e do sentir duvido que o comportamento moral jamais tivesse emergido.Ao dualismo alma/corpo cartesiano, que reduz o corpo a uma máquina e o espírito a uma substância pensante, Espinosa contrapõe uma concepção monista em que corpo e mente não são duas substâncias distintas mas manifestações diferentes da mesma substância: a Natureza ou Deus (que deixa de ser transcendente). A concepção dualista de Descartes seria responsável (escreveu-o em O Erro de Descartes), por exemplo, pela «incapacidade de a medicina tradicional considerar o ser humano como um todo». )
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3 comentários:
«incapacidade de a medicina tradicional considerar o ser humano como um todo»
Não sei se o Damásio afirma isto e não estou para ir consultar o livro. Mas, de facto, a concepção dualista, aparentemente, não permite ver o homem como um todo. Só que essa concepção não vem de Descarte, mas é muito anterior. Só para não irmos mais atrás, com Sócrates e Platão, esse dualismo é claramente anunciado. O cristianismo e sobretudo o catolicismo explicitam-no claramente.
O erro de Descartes não é, em rigor, um erro. Pelo contrário, ele permitiu um avanço notável, ao encarar o corpo como uma máquina e ao analisá-lo nessa perspectiva. Enquanto metodologia é um avanço e serão as suas limitações que levarão a explicações mais abrangentes. Mas todo o método científico é análise e síntese. Separação e reunião. Já o vimos com o post do Morin. Descarte é a análise. A síntese mostra-nos que falta algo que é necessário encontrar. Descartes não é responsável por a medicina não ver o homem como um todo. Pelo contrário, ele poderá ser o responsável pela necessidade de se ver o homem como um todo.
Essa afirmação é retirada de uma entrevista ao damásio em 2003 ( como referi no post).
O que gostava que desenvolvesses um pouco aqui, se tiveres paciência, é a perspectiva do espinosa. Nessa entrevista, a propósito do livro "encontro com espinosa", ele fala da nossa herança cartesiana ( e cita o exemplo da medicina) e da herança de espinosa, mais abrangente...
Como nunca li Espinosa, gostava de perceber em que foi que ele contribuiu para essa outra visão das coisas.
Vou ver se no fim de semana tenho tempo para isso, porquie Espinoza foi um dos autores que li muito de raspão e com um estilo chato...
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