terça-feira, 27 de maio de 2008

Poesia 2

5 comentários:

harumi disse...

de João Apolinário:


Os anos passam
parece
que a felicidade
nos trouxe
a doce
tranquilidade
de quem esquece
que ela existe

Tão natural
que dá medo
imaginá-la
desfeita

Onde é que está o segredo?

reb disse...

A doce tranquilidade de não ter que procurar a felicidade... :)

harumi disse...

Procurar a felicidade não se sabendo a razão de ser feliz
por tantas razões haver
de se saber muito o contrário

harumi disse...

de Daniel Filipe


A invenção do amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares, à porta dos edifícios públicos, nas janelas dos autocarros,
mesmo naquele muro arruinado, por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes,
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém,
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga,
um cartaz denuncia o nosso amor.

Em letras enormes do tamanho
do medo, da solidão, da angústia,
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel, numa tarde de chuva,
entre zunidos de conversa,
e inventaram o amor com caracter de urgência,
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana.

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura,
souberam entender-se sem palavras inúteis.
Apenas o silêncio.
A descoberta.
A estranheza, de um sorriso natural e inesperado.
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna.
Despediram-se, e cada um tomou um rumo diferente,
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo.

Um homem e uma mulher,
um cartaz denuncia colado em todas as esquinas da cidade.
A rádio já falou. A TV anuncia iminente a captura.
A policia de costumes avisada, procura os dois amantes nos becos e nas avenidas.
Onde houver uma flor rubra e essencial, é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo.
É preciso encontrá-los antes que seja tarde.
Antes que o exemplo frutifique.
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia.

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos.
Chamem as tropas aquarteladas na província.
Convoquem os reservistas, os bombeiros, os elementos da defesa passiva.Todos!
Decrete-se a lei marcial com todas as consequências.
O perigo justifica-o. Um homem e uma mulher, conheceram-se, amaram-se, perderam-se no labirinto da cidade.
É indispensável encontrá-los, dominá-los, convencê-los.
Antes que seja tarde, e a memória da infância nos jardins escondidos,
acorde a tolerância no coração das pessoas.

Fechem as escolas.
Sobretudo protejam as crianças da contaminação.
Uma agência comunica que algures ao sul do rio,
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram.
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste,
inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão.
Aplicado no entanto. Respeitador da disciplina.
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos.
Ainda bem que se revelou a tempo.
Vai ser internado e submetido a um tratamento especial de recuperação.
Mas é possível que haja outros.
É absolutamente vital que o diagnóstico se faça no período primário da doença.
E também que se evite o contágio, com o homem e a mulher
de que fala o cartaz colado em todas as esquinas da cidade.

Está em jogo o destino da civilização que construímos,
o destino das máquinas, das bombas de hidrogénio, das normas de discriminação racial,
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos,
a verdade incontroversa das declarações políticas.

É possível que cantem,
mas defendam-se de entender a sua voz.
Alguém que os escutou,
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas.
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra,
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz,
lhe lembravam a infância. Campos verdes floridos, água simples correndo, a brisa das montanhas…
Foi condenado à morte, é evidente. É preciso evitar um mal maior.
Mas caminhou cantando para o muro da execução,
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim, desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta.

Procurem a mulher e o homem que num bar de hotel se encontraram numa tarde de chuva.
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas, senhas, salvo-condutos, horas de recolher obrigatório,
censura prévia à Imprensa e tribunais de excepção.
Para bem da cidade, do país, da cultura,
é preciso encontrar o casal fugitivo que inventou o amor com carácter de urgência.
Os jornais da manhã, publicam a notícia de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias.
Um velho sem família, a testemunha,
diz ter sentido de súbito uma estranha paz interior,
uma voz desprendendo um cheiro a primavera,
o doce bafo quente da adolescência longínqua.

reb disse...

Harumi, hoje deste-me um sorriso:)
Esse foi um dos poemas da minha adolescência... "Um homem e uma mulher inventaram o amor com carácter d eurgência" :)
Aquela estrofe tão bonita: "É preciso encontrá-los antes que seja tarde e, a memória da infância nos jardins escondidos, acorde a tolerância no coração dos homens"

Zib, não conhecia esse poema do F.P.
simples como todos, igual a nós como sempre...

"hei-de ser quem vai chegar/ para ser quem quer partir"...


"a vida dura um momento/ mais leve que o pensamento"...

Em poesia, as palavras inspiram o silêncio....é como contemplar o mar...